Friday, January 6, 2012

"Houston, we have a problem."

Hoje mais do que nunca me lembrei dessa frase de socorro.

Depois de ficar 1 semana sem os DD's, a minha filha (o meu filho...ele volta amanhã) voltou hoje pra casa, e claro eu estava morrendo de saudades, e louca para dar o chocolate que mandei colocar o nome dela, do chocolatier belga Dominique Persoone que trouxe especialmente pra ela de Antuérpia, que no final ficou até meu amigo de Facebook.

Minha filha se chama Dominique (como muitos também sabem), tem 13 anos e é uma menina muito saudável, aparentemente, louca por chocolates e Anne Frank.
Algumas pessoas que acompanham esse blog (dá pra contar nos dedos), sabem que ela é autista, mas a maioria não sabe o que é conviver com uma pessoa autista, a vida inteira, no caso nesses 13 anos de vida. O diagnóstico de autismo clássico foi dado aos 4 anos de idade, depois de mais de 10 meses de pesquisas intensivas no Centro de Autismo em Leiden...de lá pra cá, minha vida tomou um rumo jamais pensado e imaginado, não me encaixo na categoria de pais de "criança (só) NORMAL"...e quando digo, normal, é de criança que se comunica, que berra, que manipula, que faz companhia, que acompanha, que pensa junto, que briga, e faz as pazes, criança que enche o saco com pentelhação quero isso quero aquilo. Como o símbolo do autismo, a cabeça da minha filha, é um quebra cabeça, daqueles impossíveis, e às vezes tenho a sensação que estar presente, é tudo que posso oferecer, ela nunca pede nada,

Dominique tem esse nome lindo, que modéstia a parte escolhi depois de muito pensar, por causa da alegria da música "Dominique, nique, nique"...e porque tenho um fraco por nomes franceses, soam tão bem aos ouvidos. Se ela não tivesse sido chamada Dominique teria sido: Giselle (o nome de uma grande amiga minha do segundo grau, que veio de Santarém pra viver em Porto Alegre) e do ballet Giselle...que é magia para muita garotas, principalmente daquelas que nunca puderam quando criança participar de aulas de balé como eu.
Minha amiga Giselle, também se chamava Martha (com "th", que chique, né?), sabia francês, nas escolas do Pará era francês ao invés de inglês, e era excelente em matemática, principalmente em equações de primeiro e segundo-grau (que eu era péssima).
Trocávamos conhecimentos, eu explicava inglês pra ela, e ela matemática pra mim. E só não coloquei o nome quando tive filha, porque aqui a pronúncia na Holanda seria "Rizzél" (e não Gisell(e).


Mas como sempre começo algum assunto, e vou para sei lá aonde? Não quero perder o fio da meada, do título dessa postagem no blog.
O ano de 2012 chegou, e a primeira semana já passou, mas a vida continua na mudança de calendário, e com ela os problemas de cada um.
Sempre achei que problemas eram pra serem solucionados, mas quando temos um problema sem solução como fica?
Não posso dizer que a minha filha é o problema em si, mas a atitude dela, portanto, lanço essa mensagem na garrafa, e talvez alguém leia...aliás o problema é o autismo em si, essa palavrinha estranha, de definição mais estranha ainda. Acho que na verdade autismo não tem explicação, explicar pra quê? É o mesmo quando se tem alguma dor, como explicar a dor...a outra pessoa pode até entender, mas não sente.

Já há alguns anos ela é "doidinha" pela Anne Frank, nem quero voltar atrás...mas acho que nos últimos 3 anos se não estou enganada, é Anne Frank no café, almoço, jantar. O primeiro livro (Diário de Anne Frank) que ela ganhou, foi da "tipo babá" (begeleiderster = é uma pessoa que passa 3 horas com ela por semana), mas não é somente uma babá. Também cansei de explicar essas coisas aqui na Holanda, pois não há comparativo no Brasil que eu conheça. É uma pessoa digamos, que trabalha para uma firma, e monitoriza autistas, individualmente (indo na casa), e também nos finais de semana (grupo de no máximo 4 autistas, quando eles vão passar 1 final de semana por mês fora de casa) e quando se tem um PGB (persoonsgebonden budget), uma lei na Holanda AWBZ (Algemene wet bijzondere ziektekosten) Lei geral de doenças especiais e seus custos. No caso, eu tenho direito a pagar um capital anual para pagar esses custos dessas pessoas especiais que ficam com ela nessas 3 horas por semana, e mais um final de semana por mês que ela vai pra algum lugar na Holanda com 2 acompanhantes (adultos mulheres) e outros autistas, no máximo 4.

Pois essa pessoa que se chama Ellen, depois de tanto anos trabalhando pra mim (nós), deu o "Diário de Anne Frank"  de presente, uma edição antiga, usada, de capa dura, como uma encadernação daquelas de antigamente boa, com cordão, papel amarelado, nem tanto...e o mais especial que o original, pois Anne escreveu em holandês.
Depois de um bom tempo ter andado pra cima e pra baixo, eis que as páginas foram caíndo...(algumas), e um belo dia achei na lixeira do quarto de Dominique, as páginas caídas, e algumas arrancadas...
Já tarde demais, não consegui achar todas as páginas, e com uma dor no coração, coloquei algumas páginas soltas e algumas rasgadas no lixo. Dominique acabou com o livro...
Fora o poster de Anne, outros livros (sobre a II guerra mundial), várias cópias xerox de alguns personagens/integrantes do esconderijo (Peter, Margot), ela tem quase um acervo, anda pra cima e pra baixo com essas cópias, e ultimamente ela fica perguntando:

- Você acha o Peter bonito? (Peter era o menino que morava no esconderijo da outra família que foi conviver com os Frank), ela tem uma cópia A4 de uma foto do Peter.
- Ele parece que tem "auto-confiança"?
- Ele parece sei lá o que nessa foto?
- Você acha que ele é(ra) tímido?

Como se Peter ainda existisse...

Às vezes fico com vontade de gritar e dizer: esquece esse Peter (ele está morto)...
Esquece a Anne, ela está morta.
Esquece tudo...
Mas a Dominique é assim: ela se apega nessa obsessão, e deixa quase todo mundo louco ao redor: eu, o irmão, até os professores, essa obsessão está demorando pra passar, por falta de outra...ou sei lá, por qual motivo. É a obsessão dela, e tem algo de sinistro nisso, mas nada tenho a fazer pra mudar, esperar a próxima que poderá ser bem pior.

No Natal, ela ganhou mais 2 DVD's do filme (versões diferentes), e na verdade ela queria a versão "The whole story", mas não conseguir achar nem na internet...com legendas em holândes, aliás nem sem legendas.
E do meu namorado ganhou novamente "O diário" (livro novo) sendo que ele até comentou esperançoso: "Espero que Dominique não rasgue esse". Claro que não, respondi... Dentre todos os presentes, ela se agarrou naquele e não largou mais, nem os DVD's ela deu bola, afinal não era "The whole story" com o ator do Gandhi no papel de Otto Frank. A segunda semana das férias de dezembro, ela foi passar na casa da avó, e claro...na bolsa, levou o livro...se ela pudesse, tomaria até banho com ele, de tão contente.

Hoje ela voltou pra casa, e perguntei onde está o livro?

- Na casa do papa(i) respondeu.

Pensei co meus botões, que estranho...como ela deixou na casa do pai, se tinha ficado tão contente com o livro?

Ela me disse (a maneira que entendi), que era pra moderar...ou quando estivesse na casa do pai, teria o livro pra ver/ler. (que ela já deve ter lido, folheado milhares de vezes).

Eis que subo no quarto dela e encima da escrivaninha, qual não foi a minha surpresa quando vi, algumas páginas soltas, já pressentindo algo 'estranho' no ar.
Dito e feito, eram páginas soltas do "Diário de Anne Frank" (o novo) que ela tinha gostado tanto.
Abismada, desci na sala (onde ela se encontrava no computador), perguntei pra ela (tentando não me mostrar zangada), perguntei...que página eram essas do livro velho ou novo (sabendo pela cor "não amarelada" que era do livro novo, mas querendo ouvir dela.

É do velho. Disse...

Conta a verdade Dominique, não estou zangada com você.

Depois de ter certeza que eu não estava zangada, me confessou que era do novo.

E eu perguntei, mas cadê o resto do livro? A capa bacana (vide foto acima) com a foto e aquele sorriso da Anne?

Coloquei no LIXO na casa da "oma" (avó).

No lixo? Mas dá pra colar com durex (fica horrível lógico,...), enterrar no quintal, sei lá...

Mas assim é a Dominique, faz uma cara de que não entende nada, se ausenta estando presente. Sem emoção, sem expressão até...a expressão existe mais porque eu estou na sala, eu estou tentando me comunicar com ela, mas ela olha pra mim como se não entendesse nada, simplesmente as páginas começaram a despencar, e ela colocou (a maioria fora).

Fico com medo. Olho pra ela...e dali, não sai mais nada, nenhum questionamento, nenhuma pergunta, nenhuma explicação. Eu tento fazer perguntas, mas vejo que é sem sentido, que não terei nenhuma resposta. Cada vez mais ela se isolada, não tem amigas, não participa, não assiste nem TV, não se interessa por quase nada (exceto Youtube, sempre os mesmos vídeos - Anne Frank, Anne Frank, Anne Frank)...às vezes Lost...(o seriado).
Desistiu das aulas de equitação, não demonstrou paixão alguma depois de 1 ano, levei-a numa apresentação de coral que poderíamos participar (músicas sacras na língua holandesa, ela não abriu a boca).
Só me acompanha pra sair, quando é obrigada...porque por ela ficaria no quarto trancada, fazendo nada, estalando os dedos, cheia de tiques, só desce para as refeições, pra beber água. Umas semanas atrás disse que precisava de uns "jeans", no que fomos nas lojas, e acabei comprando várias roupas, porque aproveitei a oportunidade.
Quando aparece alguma visita, e ela se "obriga" a ficar no mesmo ambiente (dá uma de normal), só faz perguntas, normalmente são as mesmas perguntas, pras diferentes pessoas.

É muito estranho o autismo, conviver com um autista é estar com alguém e sentir solidão, que nem sinto quando estou só, porisso que disse:

"Houston, we have a problem."


A tranquilidade das manhãs de domingo

Na verdade a manhã se passou, a manhã de domingo. Acordei antes do despertador. Não acho ruim, com essas musiquinhas bacanas de celu...